21/10/09

A REGRESSÃO ERDOGAN




Vai sendo hora de pôr no seu sítio à actual dirigência turca: o Governo islamista dirigido por Recep Tayyip Erdogan, no poder desde 2002 ; mas também, tras de ele, uma esfera ultranacionalista que abrang,e quando menos, a boa parte das antigas elites laicas.

O fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal –Atatürk, “o pai dos turcos”, como é conhecido desde 1934-, acreditava que Turquia não sobreviviria ao século XX, tras dois séculos de decadência e disgregação, a menos qu rechazasse o seu passado otomano e oriental e se convertisse num Estado laico de tipo europeu. Esta aposta geopolítica esteve coroada pelo éxito durante muito tempo, como todos sabemos.

O dirigente actual acredita que Turquia não será uma grande potença no século XXI, a menos que retome a civilização otomana, o enfoque cara Oriente e o Islám. Mas ele sabe que a regressão de occidental a oriental será, quando menos, tão dificil como no seu dia foi a transição de oriental em occidental. Daí que esteja tratando de tirar todo o partido que poida de Occidente antes de o repudiar ou de tornar-se contra ele.

Mustafa Kemal restaurara a independência do seu país, nos anos vinte e trinta, através da forza –mas também da diplomacia. A Turquia de Erdogan, porém, confunde forza e insolência, diplomácia e duplicidade.

Dois exemplos. As suas relações com os EEUU. E as suas relações com Israel. A partir de 1936, Atatürk comprendera que o seu país não sobreviviria sem contar com a protecção norteamericana. O seu sucessor, Ismet Inönü, negociou essa alianza a partir de 1945, ante a ameaza soviética. Bilateral num primeiro momento (1946), blindou-se em 1952 mediante a adesão à OTAN. Durante o meio século que seguiu, o apoio dos EEUU não deixou lugar a dúvidas: garantindo a seguridade e independência de Turquia, a sua importância geopolítica, e o seu desenvolvimento económico –sobretudo na década dos 50, 80 e 90. A começos do século actual, os EEUU exerceram uma crescente pressão sobre Europa –de maneira quizá excessiva- para que admitissem a Turquia no seio da UE, propondo ao mesmo tempo a Ankara converter-se no seu aliado privilegiado no mundo muçulmão –tanto no que respeita aos países árabes como a Ásia Central.



Que fixo, a partir de 2002, a Turquia de Erdogan? Tomar partido contra os EEUU no seio da OTAN sob o pretexto iraqui. Tratar como um pária ao embaixador dos EEUU, Eric Edelman, obrigando-o a renunciar ao seu posto. Flirtear com Iran e com Rússia. Ahmet Davutoglu, o ideólogo estratégico de Erdogan, fala abertamente duma inversão das alianzas e dum alinhamento de Ankara numa coaligação ánti-americana que reúna a Rússia, China, Iran, o mundo árabe e América Latina.

No nome do pragmatismo kemalista, mas também a fim de não se inimistar com os EEUU, Turquia reconhecera a Israel em 1949. Entre ambos países estabeleceram-se umas relações discretas, que se transformaram em aberta aliança sob Turgut Özal, primeiro ministro na década comprendida entre 1980 e 1990 –muçulmão piadoso, mas pro-occidental. Turquia, que no essencial segue a ser um país do Terceiro Mundo, ganhou assim um acceso inesperado ao mundo da ciência e da tecnologia ponteira –tanto no plano militar como no civil. Para além disso, os pro-israelis europeus tomaram o relevo aos EEUU na campanha a favor da adesão turca à UE.

Que fixo a Turquia de Erdogan? Endurecer, ano tras ano, as suas posições ánti-israelis, até converter-se em 2009 em inimigo declarado do Estado judeu. Lembremos a actitude injuriosa de Erdogan face Simon Peres tras o último foro de Davos. O primeiro ministro islamista também tem dado um apoio aberto ao Informe Goldstone, e tem tratado de proibir que as forças aéreas israelis –que modernizaram e renovaram a própria aviação turca tras vinte anos- participassem nas manobras da OTAN em Anatólia.


A partir de 2000, Turquia tem estado dominada no mediático e cultural por uma orgia de propaganda ánti-americana, ánti-cristã, ánti-israeli, ántisemita, tolerada (se não directamente inspirada) pelo Governo. Dou-se sucessivamente a campanha contra o embaixador Edelman, digna dos tempos do “Pravda”. Tras as reedições massivas da traducção turca do Mein Kampf, seguidas do best seller As qualidade de liderádego de Hitler, e de Tempestade metálica –uma novela de política ficção que descreve uma agressão militar dos EEUU contra Turquia (450.000 exemplares vendidos em menos dum ano). Tras O val dos lobos, uma série televisiva onde o operativo dos EEUU em Irak é apresentado como uma operação genocida ánti-turca, e onde os judeus americanos aparecem implicados no tráfico de órgaos –tema que retomou em 2009 um jornal sueco de grande tirada. E tras, enfim, o recente filme da primeira cadeia pública da TV turca, sobre as “atrozidades” israelis em Gaza. Um povo assim condicionado pelo seu Governo e establishment acha-se presto para desenvolver o mais acérrimo ódio.

Turquia é uma grande nação, e Atatürk foi um homem de Estado excepcional. Occidente tem confiado em Turquia em virtude dessa história e dessa personalidade. Mas a paciência de Occidente não é ilimitada. Se o poder actual persiste em traicionar e abadoar aos seus aliados tradicionais, que saibam a que se expõem. Turquia aínda não tem rendido contas pelo genocídio armênio, nem pelo genocídio asírio, nem pela expulsão dos gregos de Ionia em 1923, nem pelo progromo de 1934 contra os judeus de Trácia, nem pelas leis razistas de 1942 contra os judeus, nem pelos progromos ánti-cristãos de 1955, nem pela invasão de Chipre em 1974, nem pelos excessos da repressão ánti-kurda.

Occidente contava com uma Turquia que se fosse fazendo cada vez mais democrática para ser capaz de assumir e redimir o seu próprio passado. Mas não terá uma actitude semelhante com uma Turquia que reedita o Mein Kampf e difunde docudramas ántisemitas em prime time.


MICHEL GURFINKIEL

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