05/01/10

AUSCHWITZ, AS DUAS PROFANAÇÕES



Em Oswiecim, mais conhecida por Auschwitz, uma profanação engancha com outra. Na noite do 17 ao 18 de Dezembro, uns desconhecidos desmontam e levam um dos símbolos mais célebres do velho campo názi: a cínica inscripção em língua alemã –Arbeit Macht Frei (“O trabalho fazer-vos-á livres »)- que adornava a entrada principal. O Presidente da República polaca, Lech Kaczynski, promete imediatamente que se fazerá tudo o possível para “identificar e castigar aos culpáveis”. De facto, o artefacto é achado o 20 de Dezembro, nalguma zona do norde de Polônia, fragmentado em três trozos. Vários suspeitosos são detidos.

O Ministro alemão de Assuntos Exteriores, Guido Westerwelle, fala dum “crime inqualificável”. O assunto afecta-lhe directamente: vinha de anunciar que o seu país ía destinar 60 milhões de € à Fundação encarregada de preservar os vestígios materiais do campo.

Mas outra profanação, doutro tipo, produjo-se o 18 de Dezembro pela manhã. Perguntado pelo jornal on-line israeli Ynet, Janusz Marszalek, alcaide da actual vila de Oswiecim (41.382 habitantes) declara : « É uma tragédia…Os habitantes estám consternados e tristes…Eu não acredito que seja um acto ántisemita…Não teria nenhum sentido. Havia judeus no campo, é certo, mas o 90% dos presos não eram judeus –eram polacos, russos, e católicos. Só depois da Conferência de Wannsee, de 1942, os judeus foram enviados aquí. Portanto, é ilógico ao meu parescer que no roubo da passada noite haja uma motivação ántisemita”.

Marszalek tem razão ao observar que em Auschwitz houvo detidos não-judeus, e que ali foram assassinados. O campo serviu entre 1940 e 1942 para encarcerar às elites polacas não-judias. Em 1941, houvo presos de guerra soviéticos. Em 1943, 23.000 ziganos: a maior parte foram gaseados no verão de 1944. Igualmente, é certo que os judeus não foram deportados sistematicamente a Auschwitz até 1942.

Mas a imensa maioria dos seres humanos que foram assassinados neste complexo concentracionário –mais de 900.000 sobre um total de um milhão- eram judeus. E morreram entre a primavera de 1942 e o inverno de 1944-45. É difricil de entender como o alcaide de Oswiecim, entre todos os alcaides de Polônia, pode ignorar algo assim. Se o roubo da placa revela um negacionismo de primeiro grau, que pretende ocultar as atrozidades názis e borrar as vítimas, as declarações deste senhor inscrevem-se num negacionismo de segundo grau, que pretende honrar às vítimas afirmando que a maior parte de elas não eram judias.


Marszalek não faz senão retomar a doutrina oficial do regime nacional-comunista polaco anterior a 1989. Durante quarenta anos, as autoridades de Varsóvia, assim como outras instituições, nomeadamente o partido da Igreja, têm tratado de demonstrar, através de diversos sofismas, que “os Polacos” –entenda-se, os polacos católicos- foram o autêntico “povo mártir” da Segunda Guerra Mundial; e de minimizar a tragédia judia.

Tenho na minha biblioteca, um atlas das atrozidades názis em Polônia publicado nessa época. Os emprazamentos das prisões, dos campos de concentração, das câmaras de gas, dos ghettos, dos pogromos e outras massacres, estám sinalizados com uma cruz negra: a medalha polaca concedida aos heróis, equivalente à medalha militar francesa. As cruzes negras figuram no emprazamento dos ghettos de Varsóvia ou de Lodz, das fábricas da morte de Treblinka, Maidanek, Chelmno. Outra cruz negra indica Lenczna, o shetl da minha família paterna, onde a comunidade judia, que se elevava ao 60% da população local em 1939, foi assassinada em 1942. A maior parte dos polacos que consultem este tipo de obra poderiam concluir, com maior ou menor má fê, que os názis, sobretudo, assassinaram cristãos. Este é o sentimento que levara aos carmelitas polacos a debuxar uma sorte de cruzifixo monumental sobre o campo de Auschwitz a finais dos anos 80. Ou movido ao cardenal Jozef Glemp, primado de Polônia, a explicar em 1990 ao Grande Rabino polaco, o Rav Pinhas Menahem Joskowicz, que “judeus e polacos tiveram, uns e outros, seis milhões de mortos durante a 2ª Guerra Mundial”. E o seu interlocutor replicou-lhe que, claro, dos “seis milhões de polacos” cumpria descontar os três milhões de judeus polacos.

Têm transcorrido vinte anos. Polônia, libertada já do jugo, debe reconhecer a Shoá pelo que realmente foi. A obstinação dum Marszalek não deixa de ser chocante. Mas equivocaríamo-nos se reduzirmos este sucesso à “pervivência” dum passado especificamente polaco, ou de atribuirmo-lo ao sempiterno regresso do ántisemitismo do leste europeu. Actitudes análogas existem –e se multiplicam- ante os nossos olhos, na Europa occidental, nos países que tras a 2ª Guerra Mundial fundaram a União Europeia actual.

Em virtude duma lei baseada na competência universal dos tribunais, a anterior Ministra israeli de AAEE, Tzipi Livni, chefe hoje em dia da oposição de centro-esquerda em Jerusalém, tem sido objecto dum mandato de arresto na Grande Bretanha, em virtude duma acusação de “crimes de guerra” relativa aos sucessos de Gaza, emitida por um advogado ded nacionalidade britânica vinculado a Hamas. A noção duma competència universal dos tribunais contra “os inimigos da Humanidade” remonta-se ao século XVI. Estava dirigida contra os piratas e os caníbais. No século XX, foi retomada pelo Tribunal de Nuremberg, em razão da imensidade dos crimes do III Reich, começando pelo assassinato de judeus. E tem-se incorporado ao direito internacional, em virtude do precedente de Nuremberg e em nome da “memória da Shoá”. Mas, devagar, tem-se volto contra as vítimas da Shoá –e o Estado onde a maior parte destas se têm refugiado. Até chegar ao extremo de inculpar à anterior Ministra dum Estado democrático, pela demanda do factotum duma organização totalitária e terrorista.



MICHEL GURFINKIEL

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