09/01/10

ODA À CHEESEBURGER



Os rabinos analisam as leis da Torá, supostamente para que não sejam confusas. Tamanhe actitude, sem embargo, é um erro. Por analogia com a lei secular, aquilo que não está explícito na letra da lei fica ao albur da interpretação pessoal. Se se nos manda realizar um msacrifício, é irrelevante se emprendemos o caminho face o Templo andando com o pé direito ou o esquerdo. Na lei rabínica, as singelas normas da comida kosher, ou a proibição de determinados animais, evoluíram até converter-se num conglomerado de exóticas, e freqüentemente absurdas, regulamentações, como essa de que não se pode usar uma pota de aceiro onde se queceu leite para cozinhar carne, porque a pota retém ostensivelmente o gosto do leite. O conceito rabínico da interpretação exaustiva não tem fim: em tanto poidamos efectuar questionamentos a cada regra, quantas mais regras vaiamos acumulando, mais perguntas surgirão. Depois de que os rabinos tenham chegado a um consenso sobre os livros de oração e prescrito os movimentos corporais específicos para essas orações, sempre alguém poderá perguntar como respirar no transcurso dessas orações; esta pregunta não seria mais mundana que muitas das artificiosas questões plantejadas e respondidas pelos rabinos.

A lei judia supunha-se que ponheria coto às supérfluas leis religiosas paganas, com a sua miríada de deidades e complicados rituais. A Torá deixa um amplo marge à discreção pessoal por uma simples razão: que se siga pensando arredor da lei, sem problemas para poder practicá-la. Os rabinos começaram a construir um “murro arredor da lei”, promovendo proibições adicionais para evitar violações involuntárias dos grandes mandamentos quando os judeus tiveram que marchar ao Exílio. Agora que o Exílio tem rematado, o conceito de “muro” tem-se convertido em algo irrelevante e enormemente contraproducente, na medida em que só serve para afastar aos judeus do Judaísmo, cujas regras são simples e directas.

Jacob enganou a Esau, entre outras coisas, ordenhando camelhos. A tradição judia afirma que os nossos ancestros aceitaram o peso dos mandamentos antes de que Moisês os recebera no Sinai. Isto é, Jacob não imaginava que a proibição dos alimentos não-kosher impedia-lhe beber leite de camelho (os camelhos são um animal não-kosher). Os animais não-kosher –ao igual que aqueles não utilizáveis para fins de alimentação humana- gozam de grande protecção no Judaísmo. Evitamos comê-los, para além do respeito pelas suas vidas, devido à sua impureza (os humanos são puros, mas não somos caníbais). Ao igual que está permitido ferir (mas não comer) a outros seres humanos, também está permitido utilizar para o trabalho, ordenhar ou dar outros usos aos animais não-kosher –qualquer coisa, menos matá-los. Os rapazes judeus podem jogar com os porcos na mesma lógica que se permitia à tribu de Jacob beber leite de camelho.

Proclamando que determinada leite é não-kosher, os rabinos deram pê ao problema do leite kosher. Exigem a sua supervisão para certificar que o leite de vaca não está mesclado com leite de camelho ou de égoa. Se um temor pode ser infundado, este ocupa o primeiroi lugar.


As crianças judias bebem leite das suas não-kosher mães para alimentar-se, e igualmente podem consumir leite doutros animais não-kosher. As crianças, não em vau, não têm que observar os mandamentos. Mas o facto de ordenhar require a participação dum judeu adulto; ou todas as mães judias transgredem abertamente a lei oferecendo aos seus filhos o seu leite não-kosher, ou as leis do kashrut não são de aplicação no caso do leite. De facto, Rashi afirma que o kashrut é só aplicável à carne, e não a nenhuma outra parte dos animais ou os seus produtos derivados.

A proibição de mesclar carne e leite refere-se, segundo Maimônides, ao rito pagano de cozer a uma cabrinha no leite da sua mãe. Ele destacava que a proibição figura na secção adicada às práticas paganas mais que na das leis dietéticas. A proibição de mesclar carne e leite não tem nada a ver com a alimentação, em primeiro lugar.

Os rabinos extenderam o tema da proibição de mesclar carne e leite para evitar as violações involuntárias. Cozer carne no leite foi proibido inicialmente porque cabia a possibilidade de que fosse vendida como carne de vaca. Segundo esse razoamento, toda carne deveria ser proibida: que se passaria se alguém vendesse carne de porco como se fosse vaca? As violações involuntárias não constituim pecado, e o problema da carne de vaca falsa não tem sentido nos nossos dias, em que contamos com supermercados kosher.

As combinações de leite e pólo foram proibidas, não sendo que alguém nos visse comendo pólo com queixo e acreditasse que estávamos comendo uma Cheeseburger. Segundo esse razoamento, não deveríamos sair a passear com a nossa mulher, não sendo que alguém acreditasse que se trata da noiva do meu vizinho. Alguém poderia ver-nos comendo uma hamburguesa de ternera e acreditar que estamos comendo porco –o qual não é motivo para converter-nos em vegetarianos. O razoamento do “poderiam acreditar” não tem senrtido de portas adentro: obviamente, a tua mulher sabe que não cozinhou uma cabrinha no seu leite. O absurdo radica no facto de que a Cheeseburger não está proibida: é ternera, e não carne de cabrinha, e não está cozida no seu próprio leite, como a Torá é cuidadosa em especificar.

Os rabinos opõem outro argumento: as autorestricções demonstram o nosso amor a D’us, a nossa vontade de ir sempre um passo para além. Mas, acaso podem eles lêr a sua vontade? Por que presumem que a Ele lhe gostaria que extendéssemos as suas proibições? O Governo limita a velozidade máxima a 90 kms./hora; acaso alguém demonstra o seu patriotismo conduzindo todo o rato a 30 kms/hora?


Duvido que a vossa mulher interprete certas autorestricções como um signo de amor. Por que presupôr que D’us quere mais restricção de nós? A Ele, que criou os animais e permitiu que o homem lhes desse nome para estabelecer o seu domínio, seguramente lhe gostaria que consumamos carne nas suas distintas variantes. Não está bem, nem tem justificação, negar-nos a o fazer. Tem-se-nos ordeado explicitamente que disfrutemos da carne dos nossos sacrifícios. O Judaísmo não é uma perversão monástica, senão uma religião de alegria no mais sagrado dos lugares, a Criação.

A prática de expandir as proibições é arbitrária e nociva. Existem proibições respeito o incesto. Por tal motivo, devemos expandi-las até o sétimo grau de parentesco para demonstrar o nosso amor a D’us? Ou falando da comida: mediante as leis de kashrut, D’us proibiu o consumo de todas as espécies animais agás uns quantos. Neste caso a sua intenção de limitar o dano aos animais está manifestamente claro. Para demonstrar o nosso amor deveríamos convertir-nos todos em vegetarianos? A este respeito, a Torá cuida de que não violemos as leis –mas também de que não as endureçamos pela nossa conta.

“Já existem suficientes proibições na Torá como para que vós acrescentedes mais”, diz o Talmud. As leis da Torá são eminentemente práticas. As leis são tão singelas que os nómadas hebreus as podiam observar sem dificuldade no Sinai. Alguns mandamentos são meras interpretações dos outros: assim, a proibição da homosexualidade é conseqüência do “Não cometerás adultério”. É razoável, portanto, interpretar os mandamentos através da Lei Oral –mas não violar o sentido último dos mandamentos.

Duma banda, os sábios já disseram acertadamente que nem uma palavra ou letra está de mais na Torá. Doutra, os rabinos ignoram o antedito. A Torá diz, “Não cozerás uma criança no leite da sua mãe”. “Cozer” –não, “cozinhar” ou outra interpretação mais laxa. A Cheeseburger está permitida. Uma proibição específica da « cocção » tem pleno sentido no contexto dos antigos ritos paganos.

O outro aspecto cruzial é “o leite da sua mãe”. O qual poderia ser remotamente interpretado como “alguém da sua estirpe”, tal como “teus pais” faz referência geralmente aos ancestros; mas não pode ser interpretado como “o leite de qualquer”. A Torá em sítio algum proíbe cozer uma cabrinha em leite de vaca.

Existe certa liberdade à hora de interpretar a palavra gdi –cria-. No Tanaj, gdi nunca significa outrto animal que não seja “ a cria da cabra”. Em concreto, uma gdiah é uma cabra fémia. Alguns comentaristas afirmam ex nihilo que gdi poderia significar também anho (seh). Inclusso se gdi significar anho, duas coisas estám claras: gdi remite só a um animal jovem, e nunca a um becerro. Em muitos contextos, gdi interpreta-se como “rebanho”; não havia rebanhos de vacas no antigo Meio Leste. A leitura mais inclussiva dos Mandamentos proíbe cozer um anho jovem ou uma cabrinha no leite, respectivo, da ovelha ou da cabra. O mandamento é simples e diáfano. O resto é obra dos rabinos.

Considerade o abismo entre Torá e a Jalajá. A cocção dumha cabrinha no leite de cabra foi extendida às vacas, depois aos pássaros (pólos), depois a todas as formas de cocção, depois a todas as comidas que incluam pólo ou leite, depois aos pratos que foram utilizados para servir leite ou carne, depois às formas de armazenamento, depois aos fregadeiros, às mesas. E rematamos por distinguir entre restaurantes kosher de vaca e doutras carnes.


OBADIAH SHOHER

1 comentário:

  1. Escrevo abaixo um trecho do capítulo 28 do Livro do profeta Isaias. Parece-me que o último verso do trecho é pertinente ao caso. É uma tradução em português, mas será fácil verificar o original:

    "Ai da coroa de soberba dos bêbados de Efraim, cujo glorioso ornamento é como a flor que cai, que está sobre a cabeça do fértil vale dos vencidos do vinho. Eis que o Senhor tem um forte e poderoso; como tempestade de saraiva, tormenta destruidora, e como tempestade de impetuosas águas que transbordam, ele, com a mão, derrubará por terra. A coroa de soberba dos bêbados de Efraim será pisada aos pés. E a flor caída do seu glorioso ornamento, que está sobre a cabeça do fértil vale, será como o fruto temporão antes do verão, que, vendo-o alguém, e tendo-o ainda na mão, o engole. Naquele dia o SENHOR dos Exércitos será por coroa gloriosa, e por diadema formosa, para os restantes de seu povo. E por espírito de juízo, para o que se assenta a julgar, e por fortaleza para os que fazem recuar a peleja até à porta. Mas também estes erram por causa do vinho, e com a bebida forte se desencaminham; até o sacerdote e o profeta erram por causa da bebida forte; são absorvidos pelo vinho; desencaminham-se por causa da bebida forte; andam errados na visão e tropeçam no juízo. Porque todas as suas mesas estão cheias de vômitos e imundícia, e não há lugar limpo. A quem, pois, se ensinaria o conhecimento? E a quem se daria a entender doutrina? Ao desmamado do leite, e ao arrancado dos seios? Porque é mandamento sobre mandamento, mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali. Assim por lábios gaguejantes, e por outra língua, falará a este povo. Ao qual disse: Este é o descanso, dai descanso ao cansado; e este é o refrigério; porém não quiseram ouvir. Assim, pois, a palavra do SENHOR lhes será mandamento sobre mandamento, mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem e se enlacem, e sejam presos."

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